quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

ENTREVISTA COM AMÁLIA RODRIGUES

Entrevista realizada por Nuno Espinal em Setembro de 1984
Subo a escadaria de pedra que procede o átrio de entrada de um palacete, ali para os lados de S. Bento. Estou em casa de Amália Rodrigues.
Aguardo-a, Amália não se faz esperar.
Apresento-me, dou-lhe o último número da revista, folheia-o silenciosamente.

Caem-lhe os olhos num ou noutro apontamento, prende-se a um artigo: A Guitarra Portuguesa. Explico-lhe ao que venho.

“Interessa-me que a Senhora dê a sua opinião…a evolução do Fado…as várias expressões do Fado…”
Amália silenciosa, os olhos a perscrutar as folhas da revista. Permanece em silêncio, continua-o, um silêncio que já se prolonga. Até que diz:
“Sabe? Não sou uma mulher culta, nem conte que vá responder a perguntas de cultura. Acontece que nem tenho mais que três anos de escola…”
Fico surpreso, mesmo embaraçado.
“A intenção não é tanto essa. Mas a Senhora tem uma vivência muito rica, muito cheia…”

Amália interrompe, parece agastada.
“O que decerto quererá dizer é que não sou parva. Tenho um tipo de intuição que me deixa perceber as coisas…”

Volta a folhear, envolve-se em novo silêncio, volta ao título: «A Guitarra Portuguesa, Sua Origem e Evolução Histórica».
É então que pela primeira vez me dirige atentamente o olhar. Um olhar pleno de ironia, uma certa ponta de troça, que nem dissimula ao dizer:
“Não deixo, por exemplo, de saber que a guitarra tem doze cordas”.
Era o bastante, Amália dizia-me tudo. Muito mais que os conteúdos, as formas, as realidades, muito mais que as rudezas, as filosofias, as especulações das coisas, muito mais importante que tudo isso, em Amália o que conta é o sentir das coisas. Já o sabia. Tinham-me prevenido. Saber da guitarra, saber do fado, em Amália é antes de tudo saber-lhe o sentir. O resto não é ou pouco é para Amália. É essa a razão que a define, é essa a imagem que lhe auréola o retrato: “sou fadista por condição, mas também por sentimento”.
A entrevista acabaria por ser outra. O guião já memorizado, as perguntas já decoradas, deixavam de ter sentido. Tudo iria correr ao sabor do acaso. Afinal, tanto ao jeito de Amália…
A Cantiga começou ao pé da porta
-Amália só seria Amália em Portugal. Concorda com a afirmação?
-De certa maneira concordo. Foi este o meu destino, tudo teria assim de acontecer. As pessoas disseram-me que eu era fadista e comecei a cantar. A cantiga começava ao pé da porta da vizinha que lavava a roupa, que passava a ferro, que costurava. E foram aquelas cantigas que eu aprendi: Sou fadista por condição, mas também por sentimento. O fado teria de acontecer-me.
-O fado ao pé da porta. Por certo o fado típico da Mouraria, o de Alfama, por vezes até o fado canalha…
-(Amália um tanto irritada) O fado tem de ser canalha quando as pessoas que o cantam são canalhas, não acha? Mas porque é que o fado tem de ser canalha? Encontre-me aí na sua cabeça uma explicação para tal…
-Nos seus primórdios o fado esteve ligado a ambientes de taberna, onde os chamados” fora da lei”…
-Bem, nós nascemos com poucos centímetros e podemos acabar com um metro e noventa ou mais. Eu, por exemplo, nunca fui canalha e o Pátio dos Quintalinhos, onde eu nasci, nunca me deu para isso…Sou filha de gente da Beira Baixa, habituada a não dizer palavrões, chorava mesmo quando já espigadota mos diziam, por isso nada tenho a ver com esse tal fado canalha, nem tão pouco gosto…
-Mas admite que possa haver um tipo de fado criado e cantado em ambientes marginais…
-Sim…talvez… admito, mas eu não gosto. Mas admito antes que foi um fado que já existiu. De facto o fado terá pertencido, em tempos passados, a um meio que diziam ser das mulheres perdidas, de gente marginal, enfim dos tais chamados “fora da lei”. Eu própria, quando comecei a cantar, constituí um desgosto enorme para a família. Naquela altura as próprias cançonetistas nem queriam cantar fado, nem ser misturadas com fadistas. Depois tudo evoluiu, tudo veio a ser diferente. Hoje toda a cançonetista canta fado, mas antes de mim só os fadistas o faziam.
Improviso o meu canto a todo o momento, se o não faço não me divirto
-Passado que foi o tempo em que começou a cantar e, tal como diz, houve uma evolução. Amália Rodrigues tem alguma coisa a ver com essa evolução?
-Apesar de evitar sempre falar de mim própria, não seria honesta se não lhe dissesse que julgo ter tido uma certa influência no fado. O preto no vestir para se cantar o fado fui eu que o criei. Hoje quase toda a fadista canta de preto. As voltinhas na voz fui eu também que as inventei, pois, como filha de gente da Beira Baixa, trouxe ao fado aqueles rodriguinhos que a minha mãe me ensinou e que são uma característica do canto beirão. O fado era liso e, curiosamente, os tais rodriguinhos depois começaram a surgir tão repetidos e constantes na voz de algumas fadistas que acabaram por criar uma monotonia de sinal igual à do fado liso.
-As tais voltinhas na voz de que fala são uma característica que afinal muito a define…
-E que me permite divergir permanentemente o cantar. Eu própria me canso de ser igual. Improviso a todo o momento. Se o não faço não me divirto e na minha maneira de improvisar é que faço aquelas voltinhas.
-A Amália foi decerto a primeira voz portuguesa a ser verdadeiramente conhecida em Portugal. Entrou no domínio público com tal rapidez e força que, desde logo, ganhou uma enorme popularidade.
-A minha popularidade, inicialmente, aconteceu nem sei porquê. Naqueles primeiros tempos não havia quem ligasse grande importância aos fadistas. Havia um anúncio de quando em quando, que referia o Retiro da Severa, o Café Luso e pouco mais. Quem tinha rádio era rei e a rádio nem sequer estava muito expandida. E eu não conhecia quem quer que fosse que me pudesse ajudar. Contudo, um dia um senhor, que tinha o hábito de me ouvir no Cais da Rocha, porque eu tinha a mania de cantar na rua, apresentou-me um tocador de viola, o Santos Moreira, que gostou da minha voz e de imediato me convenceu a ir cantar no Retiro da Severa. Fui… e passados cinco meses era atracção no Teatro. Isto talvez há uns quarenta e dois anos e é praticamente desde essa altura que sou conhecida. Por sorte desde logo agradei…
-E de tal modo que pouco tempo depois já Amália levava o fado ao estrangeiro. Era, assim se pode dizer, a primeira internacionalização do fado. Até então o fado nunca tinha saído de Portugal.
-Tudo aconteceu muito naturalmente. Estrangeiros ligados ao meio artístico que vinham a Portugal ouviam-me e gostavam. Depois falavam com empresários ou directores artísticos e os contratos surgiam. A minha primeira saída foi ao Brasil em 1944. Por essa altura toda a gente fazia troça do fado. Cantei no Casino Copacabana, o sítio mais elegante no Rio de Janeiro. O sucesso foi grande, Depois sucederam-se outros países e firmei uma carreira no estrangeiro que, tal como em Portugal, foi conseguida sem quaisquer estruturas de apoio, sem quaisquer ajudas de casas discográficas. A minha promoção foi feita, unicamente, por aquilo que eu valia ou não valia. Ajudas? Só do meu público. Ao público devo a minha carreira, ao público, a meus pais e a Deus.
-Sei que é católica?
-Ai, sou…

-Praticante?
-Convictamente...
-Fado…Religião…
-O fado tem muito a ver com Destino e o Destino é marcado por Deus.

-Sei também que é supersticiosa… e é uma mulher cheia de medos. Medo de viajar de avião… medo de enfrentar o público… medo da morte…
-Não há razões que o expliquem… ou talvez existam… Mas sou mesmo assim. É assim que eu funciono. De resto, sou uma pessoa para o negativo. Muito aberta ao assalto de ideias negativas. Claro que tenho defesas. Ir passear ao campo, por exemplo. Todos os dias o faço, dou longos passeios ao campo, contacto pessoas, apanho flores. Como vê tenho a casa cheia de flores.
Eu gosto é das histórias que eu gosto
-Coloca, por vezes, as coisas no imaginário, recusa aceitar algumas realidades. A sua aversão ao “fado canalha” é um exemplo.
-A verdade, por vezes, é-me completamente indiferente. Eu gosto é de histórias que eu gosto. O caso do fado... O fado para mim nasceu no mar… com a tristeza dos marinheiros ao estarem longe da terra, longe da família, longe dos amores. O fado é um lamento, uma queixa… E os portugueses, mesmo na própria poesia, têm pena de si próprios. Para mim, a história do fado, a razão do fado, é um pouco esta. O fado nasceu no mar…
-Pelo que me dá a perceber é muito dogmática nas suas próprias verdades…
-(Amália sorri) Há uns vinte anos fiz uns versos que diziam: “Ai de mim que vou vivendo/Ai, este mundo de desespero/Ai, tudo o que não entendo/Ai, o que entendo e não quero.” Julgo que aqui digo tudo. Aquilo que eu não quero entender não vale a pena eu não entendo. Dizem que a Severa morreu de uma ingestão de borrachos. Para mim morreu foi de amores. Mas que não, que morreu foi de indigestão. Não gosto! Para mim o bonito é ter morrido de amores…
-É notória a grande paixão da Amália pela poesia. Com a sua extrema sensibilidade, com a sua forma profunda e sentida de cantar contemplou o fado com poemas de alto significado de poesia erudita de poetas de língua portuguesa.Com Amália o fado ganhou mais dignidade pelos poemas de Camões, Vinicius de Morais, Pedro Homem de Melo, Ary dos Santos, José Régio…
- ... Alexandre O’Neill, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, David Mourão Ferreira e outros. Cantei estes poetas numa época já longe do período do chamado “Fado dos Ceguinhos”, dos primeiros fados que aprendi. Mas também cantei poetas populares como o Gabriel Oliveira e o Linhares Barbosa. E não deixo nunca de realçar a extrema importância de um outro poeta, mas este das notas da música, o Alain Oulman, que muito contribuiu, graças ao seu talento e à sua sensibilidade, para realçar a paixão que eu sempre pus nos poemas que canto.
-A Amália é uma pessoa simples. Sente-se, percebe-se é uma realidade. Contudo, talvez nem sempre a um artista a vaidade fique mal. Por vezes, estimula-o, dá-lhe vontade de ser melhor…
-Eu, no meu entender, acho que fica. E por isso sempre evitei falar de mim…e hoje o faço é porque me sinto para além de… é com se já estivesse morta. Agora o que nunca falei de outros artistas. Fosse quem fosse. Mas hoje fala-se muito de si próprio e dos outros. É quase como uma moda… Mas não é por moda que passei a falar um pouco de mim… a minha carreira está no fim e a observação de certas coisas que considero injustas força-me a referir casos que se passaram comigo. E por vezes com um tom azedo, que antes nunca tive…
-“Coisas que considera injustas”… Isso tem a ver com o período imediato ao vinte e cinco de Abril?
-Tem. Nessa altura é que me chamaram muitas coisas. Até disseram que eu era da PIDE.
-Quem, concretamente? Pessoas ligadas ao vinte e cinco de Abril? Membros de governos, por exemplo?
-Não, a nível das entidades oficiais nunca. Foram mais alguns jornalistas e principalmente alguns artistas. Mas, repare. É interessante… artistas que antes cantavam o “soldado que vais para a guerra”, “Angola é nossa”, e coisas assim é que hoje são tidos lá para a esquerda… eu até aceitava que Angola era nossa, mas valeu-me o meu bom gosto para nunca cantar nada disso. Mas ai de mim se o tivesse feito.
Sabe do que é que fui acusada? De ser comunista.
-Diz-se, no entanto, que terá sido uma vedeta aproveitada pelo anterior regime…
-Não acredite nisso… são tudo balelas, nunca me ligaram qualquer importância. Agora é que quase me veneram, de vez em quando vem um membro do governo dizer que faço falta a Portugal.
-Todavia terá havido um certo rebate de consciência e as acusações sem sentido que lhe fizeram estão já ultrapassadas…
-Com certeza. Mas se há um rebate de consciência é porque houve um pecado. E é a memória desse pecado que, já nem me acompanhando todos os dias, me tem feito mal. Arranjei uma doença de coração… (Amália deixa cair algumas lágrimas. Por vezes as lágrimas são bem mais convincentes que todas as palavras, por maior eloquência que estas possam conter).
-Da forma magoada como refere essas acusações deduzo que abomina a PIDE.
-Discordo de tudo o que seja opressão. Mas de qualquer modo sempre fui uma pessoa muito afastada de politiquices…
-Nunca na sua vida interferiu directamente com qualquer caso político?
-(Amália solta uma gargalhada) A política é que já interferiu comigo…logo a seguir ao vinte e cinco de Abril fui chamada à Comissão de Extinção da PIDE. Fiquei surpreendida e muito mais quando me perguntaram se a PIDE alguma vez me tinha maltratado. Sabe de que é que tinha sido acusada? Imagine… de ser comunista. Com a PIDE só tive unicamente um contacto. E a tal história de ser comunista presumo que venha daí. Corria o ano de 1958, realizaram-se eleições. O Humberto Delgado concorreu, surgiram resultados e logo constou que a contagem de votos fora falseada. Como protesto, os artistas decidiram que durante três dias não actuariam em qualquer espectáculo. Eu recebi então muitas cartas anónimas em que me pediam que, como pessoa do povo, colaborasse no protesto. Acedi. Só que o disse a um amigo, dos tais de Peniche. A PIDE soube, apareceu-me em casa. E fizeram-me todas as pressões para que eu alterasse a atitude… que eu assumia uma atitude política… enfim, se quer que lhe diga nem me lembro quem eles eram e nunca mais na minha vida vi alguém da PIDE. Agora o que nunca pensei é que uma atitude minha pudesse ter tanta importância… no fundo nunca me senti Amália, sabe?...
-Mas a Amália há muito que é uma Diva, é um Mito…
-Para lhe dizer com franqueza essa conversa da imortalidade não me interessa. O mundo acaba quando eu morrer. Não me preocupa a história de ficar na História. Ou talvez me preocupe… não gosto de pensar na morte.
-Amália, uma última pergunta. Para si o que é o Fado?
-O Fado… não o sei definir, só o sei sentir…
Nuno Espinal, Revista “Espaço Aberto”.
«Quem lhe disse que abandonei a minha carreira? Tenho quase a certeza que vou cantar outra vez!».
A voz arrastada chega envolta no eco do passado. Passou uma década desde o nosso último encontro, e oiço-a de novo ralhar: «Quem lhe disse que abandonei a minha carreira? Tenho quase a certeza que vou cantar outra vez!». E ninguém sabe se o fez porque, aos 79 anos, apanhou sozinha e sem avisar o trem da partida. Era uma quarta-feira. entrara o Outono, e quando a sua secretária particular, pelas oito da manhã, entrou na casa de S. Bento, era suposto ela estar a dormir. Mas não: abandonara-nos.
É possível resumir a sua vida?
É um bocado confuso, difícil... Tem altos e baixos. Os baixos já lá vão, graças a Deus, embora eu esteja mais para o baixo do que para o alto, porque estou muito mais perto de morrer agora do que naquela altura. Tomara eu regressar àquela época em que cantava para não morrer.

A vida da sua família também foi feita de picos...
Pelo menos a das pessoas de quem mais gostei, como o meu avô materno, um empreiteiro do Fundão. Mas jogava muito, gastou o dinheiro e foi acabar os seus últimos anos na Fábrica Conde da Ponte, em Lisboa. Foi, talvez, o meu maior admirador. Queria que eu cantasse, cantasse. Quando eu chegava a casa mandava-me cantar - e punha-se à janela a ver quem ficava a ouvir na rua. Era um 1° andar baixo e ele dizia: «Já pararam sete, já pararam dez».

O seu pai também era do Fundão?
O meu pai não era do Fundão, era de Castelo Branco... É um nome mais bonito que Fundão... Fundão afunda-se logo. Era seleiro e sapateiro, mas gostava era de tocar cornetim. Um dia a família dele saiu do Fundão para ir trabalhar para a terra da minha mãe. Ele gostou logo dela. ela gostou ainda mais dele, casaram-se, criaram dez filhos - e, dos que não criaram, eu sou um deles [risos].

Mas a Amália nasceu em Lisboa...
Em 1929 nem sei o mês. Na Rua Martim Vaz que é perto da Calçada de Santana. Na freguesia da Pena. Sou Amália da Piedade e nasci na freguesia da Pena... Coitadinha de mim não é?: [risos]. Mas, voltando aos meus pais. No Fundão havia duas bandas: a da 'música nova' e a da 'música velha'. O meu pai fazia parte desta última e parece que era muito cobiçado. A minha mãe andava sempre atrás dele. Nasceram os filhos e ele não ganhava para viver. Aí, vieram para casa dos meus avós maternos, que já não eram ricos como antigamente, pensando que eles os podiam ajudar. Não conseguiram aquilo que queriam, e voltaram para a terra - de onde só saíram muitos anos mais tarde.
Portanto, a única certeza que tenho é que nasci na casa da minha avó, estava lá a minha mãe. Mas de mim sempre disseram muita coisa. Há até uma história muito engraçada que eu gostava de contar... Uma vez ia cantar numa coisa ao ar livre, em Trás-os-Montes. Fiquei em casa de uma senhora que tinha uma casa muito bonita. Como não havia camarins nem coisa nenhuma, fui lá para me pintar e me vestir. Então, estava um homem numa janela a dizer para outros: «Vocês vão hoje ouvir a Amália Rodrigues por minha causa Se não fosse eu, ela não estava aqui». Ele estava a dizer que a minha mãe tinha tido um parto muito difícil e que foi graças a ele que não morremos as duas. O que era uma grande mentira. A minha mãe e a minha avó não tinham dinheiro para ir buscar doutores, para ir a hospitais, nem sabiam que havia maternidades... Só conheciam as chamadas 'mulheres do Fundão'.

As estrelas abrem sempre no imaginário dos outros uma fuga para as suas vidas monótonas...
Olhe esta: uma vez, no Porto, veio uma pessoa com o retrato de um homem e dizia que era o meu pai. «O meu pai não é este, minha senhora, desculpe lá». «É, sim senhora!». «Isso é que não é!». «Como é que se chamava o seu pai?». «O meu pai é Albertino». «Albertino... não é nada Albertino... o seu pai é José». «Olhe, minha senhora, se não sabe quem é o seu pai é lá consigo. Eu sei qual é o meu, está bem?».

A sua mãe também tinha altos e baixos?
Estive praticamente nove anos sem ver a minha mãe. Só fui lá uma vez, tinha uns cinco anos. A minha mãe sonhou que eu tinha morrido. Estava muito mal no hospital e eu tive que ir lá. Lembro-me que eu queria ir ao colo, porque era ainda muito pequena. Ainda hoje sou mandriona, não gosto nada de andar! Passado um tempo, vieram todos para Lisboa.

Viveu muito tempo afastada dos seus pais e numa fase importantíssima para uma criança. Foi uma época má da sua vida?
Não. O sofrimento foi mais quando veio a minha mãe. Tinha os meus 14 anos. Quando veio a minha mãe e os meus irmãos, eu queria estar em casa dos meus pais, porque lá havia gente, e na da minha avó só havia o meu avô. A minha avó ficou triste. Como os meus irmãos trabalhavam (quer dizer, um trabalhava e outro era um bocado maluco mas era bom rapaz, eu gostava muito dele, foi boxeur), eu é que tomava conta da casa. Sabia fazer tudo, lavar e passar.

Sempre se sentiu um bocadinho rejeitada pela mãe...
Ela foi má para mim sem o ser, sabe o que é? Era o feitio dela... O feitio que, coitadinha, teve até morrer. A minha mãe chamava-se Lucinda, não é um nome muito feio. nem muito bonito, não é?... E era uma pessoa muito estranha, mas muito engraçada. Tinha um feitio um bocado esquisito. Os bombeiros passavam a vida lá em casa porque ela achava que estava sempre doente e queria ir para o hospital. Mas quando eles chegavam já estava melhor. Depois, como as outras filhas eram criadas com ela e eu não, ela gostava mais das outras do que de mim. Também é natural. Elas eram mais, eu era só uma, era pequenina, não valia a
pena.

O que herdou dos dois? Com quem se acha mais parecida?
O meu pai a tocar era como eu a cantar. Não tocava nada de que não gostasse muito. E fechava os olhos... E eu fui para a televisão a primeira vez, a segunda, a terceira, a quarta e a última, e não era capaz de abrir os olhos. Em toda a parte eu abria um bocadinho os olhos, mas depois fechava-os com vergonha... O meu pai era exactamente igual a mim. No palco também fecho os olhos. Não é por querer... Estar.com os olhos sempre fechados é muito chato.

E da sua mãe, o que herdou?
A minha mãe cantava muito bem, tinha uma voz muitíssimo bonita e era quase igual a mim, porque não era capaz de cantar uma coisa sempre da mesma maneira. Havia uma canção de que eu gostava muito, que era a Santa Luzia, e eu queria que ela me ensinasse. Mas de cada vez que ela cantava, era diferente... Não consegui aprender. A minha mãe gostava de cantar e cantava muito bem, mas não podia cantar por causa dos 'ssss'. «Osss amoresss quesss messs dedicastesss»...

Chegou a fazer a primária?
Sim fui para a primária com nove anos e meio e porque um dos meus tios, que achava que eu era esperta, convenceu a minha avó. Já tinha passado a data das inscrições, mas uma contínua meteu uma cunha. Eu tinha muitas doenças de brônquios, estava quase sempre na cama com papas de linhaça, com ventosas, com tudo. Chegava à escola e a professora mandava-me embora. Só que eu não me queria ir embora. Queria estar na escola... Gostava muito de ir para a escola, gostava muito da professora e ela gostava muito de mim. Passei sempre, sempre com vinte valores. E não tinha livros...

Sem livros como é que tinha essas notas?
Só tinha um livro que a minha avó me comprou. Quando eu queria comprar outro, ela dizia: «Tens aquele muito bom, tens aquele novo». Era de Geografia. E eu que detestei Geografia... A minha avó não fazia nenhuma ideia de que só um livro não chegava para tudo...

Já cantava na escola?
Cantava no recreio... Quadras que eu ouvia aos cegos. Depois vendiam aquelas letras por cinco tostões. Eu cantava as quadras... Uma vez, íamos fazer uma festa na escola e a minha professora estava a ouvir-me no recreio e disse: «Esta é que vai ser a vedeta».

Quando saiu da escola começou logo a trabalhar?
Éramos muitos filhos e tive que ir trabalhar. Andei por vários sítios. Fui para a fábrica da Pampulha. Havia muitas empreitadas. Na época das ervilhas, quem
descascasse mais depressa ganhava mais...

Quando era criança, o que achava que lhe ia sair no futuro?
Não pensava em nada. Só pensava no dia seguinte. Ou naquela altura, mesmo. «Tenho fome, tenho que ir não sei quê...». Às vezes ia ao pé da minha avó, escondia um bocado de pão debaixo do braço, para não se ver. E gostava muito de azeitonas. Comia-as quase todas no caminho para casa. Era sempre mais uma, mais uma, só esta e depois eram todas. Estavam à espera das azeitonas e não tinham nenhumas...

A sua sina não parou aí...
Depois a minha avó mandou-me para o Fundão. Eu gostava de bordar e andara a aprender Tinha uma tia no Fundão - Maria do Carmo, irmã do meu pai e minha madrinha - que bordava à máquina. E eu via aquelas flores todas e também queria fazer aquilo. Ela tinha uma casa de pasto. Embaixo era um café, com os mata-bichos, e em cama uma sala onde vinham os soldados e os capitães jantar, almoçar. Eu já tinha nessa altura mais um aninho e os ra-eostavam de me ver... Era uma rapariga de 14 anos, sabia passar a ferro, sabia lavar, e ela queria que eu trabalhasse, trabalhasse... Levantava-me às seis da manhã, tinha que lavar todas as coisas que tinham ficado sujas dos homens que iam lá... Não foi agradável. Foi a primeira vez que tive um ataque de raiva... Tirei tudo de uma mesa e atirei da janela abaixo. Vim-me embora. Mas estava já muito arrependida... Andei, andei, desde as 6h30, até encontrar uma terra chamada Telhado. Depois olhei para o lado e vi uma linha de comboio.
Meti-me à linha de comboio e vim para Lisboa. Mas a minha tia foi dizer ao meu tio e ao meu pai o que tinha acontecido, e o meu tio foi-me buscar. Graças a Deus que foi. Eu tinha medo e quando apareceu o meu tio fiquei toda contente. Depois foram os meus avós lá buscar-me.

É a história da Gata Borralheira. Aposto que havia primas preguiçosas e feias...
As minhas primas tinham uma instrução que eu não tinha... Ficaram nos liceus. Só que eu era inteligente. Elas aprendiam inglês, mas como têm uma pronúncia da Beira Baixa trocavam o singular e o plural. E é verdade que não gostavam nada de mim. Eu também não gostava do que elas me faziam. Não me ligavam importância nenhuma. Era a Gata Borralheira. Até me quiseram fazer o casamento.

Quem era o sapo?
Era um homem muito feio, muito pequenininho, muito magrinho... Tinha um nariz pequenino e esquisito, parecia que não tinha nariz nem nada. Mas a minha tia Ana, que era a mais velha, dizia: «Olha a fidalga. O homem tem dinheiro!». «Mas não tem cara, é feio!», respondia eu.
«Como toda a gente do bairro gostava de me ouvir cantar, e precisavam de uma rapariga para a marcha, foram falar com a minha família.».

A sua sina eternizou-se na Praça da Ribeira...
Sim, havia um senhor que conhecia o meu pai e que tinha um stand no Cais da
Rocha, onde vendia vinho e bordados da Madeira. Eu e a minha irmã Celeste trabalhávamos lá à comissão. Um dia alguém aconselhou a minha mãe a montar uma banca de fruta no mercado da Ribeira. Mas quem vendia a fruta, ao contrário do que se disse, era a minha mãe.
Quando aquilo não se esgotava, eu e a minha irmã Celeste íamos com um cesto pequeno oferecer às pessoas, aos barcos. Havia estrangeiros à janela... Um dia um polícia até disse à minha mãe: «Esta rapariga é mal empregada».

Cantava na praça?
A primeira pessoa que fiz chorar quando cantava foi o meu vizinho, que era chauffeur. Nessa altura tinham morto na Quinta da Terrugem um chauffeur, e os ceguinhos cantavam a sua morte. Eu sempre que via o meu vizinho cantava aquilo: «Do fim do pobre chauffeur/que deixou, vertendo em pranto/No seu lar, humilde e santo/Seus filhos e a mulher». Eu cantei-lhe aquilo - e cantava de tal maneira que o homem começava a chorar, chorar, chorar. Daí comecei a cantar outras coisas - e mandavam-me cantar. Mas quando me mandavam cantar eu não queria cantar - e quando eu cantava a minha avó não queria que eu cantasse. Era assim continuamente...

Gostava de cinema?
Sim. Com o dinheiro do trabalho, eu e a Celeste íamos ao cinema. Via os filmes em Alcântara. O que mais me impressionou foi "A Dama Das Camélias", com a Greta Garbo Depois via os filmes do José Mojíca, de Carlos Gardel, que comecei logo a cantar. Achava muito bonito o que Gardel cantava, aquilo era muito parecido com a nossa língua (com o fado)... Naquela altura tinha uns 12 anos. Então, comecei a cantar aquilo e cantava as coisas espanholas. Eu nasci fadista, sou mesmo fadista.

É nessa fase que começa com ideia de suicídio. Era a sério ou só para chamar a atenção?
Eram criancices. Uma vez comi fósforos para castigar a minha avó, que me tinha dito uma coisa de que não gostei. Quando vi A Dama das Camélias chorei, bebia vinagre para ser como ela... Ia para a janela para apanhar corrente de ar para ficar tuberculosa e morrer como ela. Eu não percebi nada daquilo, só percebi que o pai dela era muito mau e que ela se matou por isso. Queria também morrer assim. .

Foi numa marcha em Alcântara que a sua voz chamou a atenção?
Como toda a gente do bairro gostava de me ouvir cantar, e precisavam de uma rapariga para a marcha, foram falar com a minha família. A minha mãe não queria, o meu pai não queria, mas depois foram ter com a minha mãe e o meu pai e disseram: «Não façam isso, porque a vossa filha canta muito bem». «É, mas na Marcha de Alcântara vai muita gente e ninguém vê quem canta pior ou melhor». Mas, por acaso, o ensaiador escolheu-me a mim para cantar o "Fado de Alcântara" com um rapaz - um tal Bertier que parece que era francês mas vivia em Portugal e tinha boa voz. Quando chegávamos eu cantava e o povo fazia uma grande ovação.

A primeira vez que cantou em público numa verbena, acompanhada à guitarra pelo seu tio João Rebordâo, não correu muito bem...
Esse meu tio tocava guitarra e bebia. Um dia levou-me para a Verbena, em Alcântara, disse que tinha uma sobrinha que cantava muito bem. E cantava - mas tinha muita vergonha. Foi a primeira vez que eu cantei. Cheguei lá, tanta cantiga que eu sabia, mas fui-me logo lembrar de uma que eu achava muito ridícula e não fui capaz de cantar. Sou muito tímida.

Também a fizeram chorar. Quando conheceu Francisco, com quem viria a casar, tentou mesmo o suicídio...
E dessa vez foi a sério.

Conheceu o seu marido em 1938, no concurso da Primavera, onde raparigas de vários bairros se candidatavam a Rainha do Fado. Mas, ao que parece, nem o concurso nem o primeiro amor lhe correram bem...
Triste sina, não é? Era ele quem tocava para aquela gente toda cantar, mas não era profissional, era amador. Uma das zangas que tivemos, a partir daí, foi porque ele queria acompanhar-me para todo o lado - e eu sabia perfeitamente que havia gente que tocava melhor do que ele. E depois ele tinha outro trabalho, era mecânico... Nesse concurso havia muitas provas, e a melhor ganhava o prémio de Rainha do Fado desse ano. Cantei e toda a gente bateu palmas. As outras raparigas ficaram um bocadinho com medo e disseram: ou ela ou nós. Ameaçavam deixar o concurso. E só porque tinham mais dez tostões do que eu, gozavam-me, dizendo que eu vendia fruta na praça. Se elas desistissem, não havia concurso. E eu acabei por desistir.

Mas não desistiu do Francisco...
Bem, foi um grande amor naquela altura, com 18 anos. O rapaz era bonito e tocava guitarra - e eu gostava de fado. Mas a maneira como ele conduziu as coisas não foi bonita e os meus irmãos não gostaram...

Tinham ultrapassado as 'regras', numa época em que uma rapariga deveria chegar 'intacta' ao casamento?
Sim. E soube-se. A minha tia disse à minha mãe. que por sua vez contou aos meus irmãos. Foram falar com ele na minha presença - e o Francisco disse que não tinha nada comigo. Que namorava há seis anos uma rapariga, já tinham as mobílias compradas e tudo. Os meus irmãos voltaram a falar com ele e disseram-lhe: «A rapariga está assim, nunca teve namorado, você tem de casar com ela». E obrigaram-no. Eu não queria casar obrigada. Até tinha um guarda-fiscal que queria casar comigo mesmo assim, mas eu não quis. Quando ouvi o Francisco dizer aos meus irmãos: «Não fui eu», as lágrimas caíram-me logo... Tive que fugir dali. As lágrimas começaram a cair fora de tempo, até que foram à morte. Por acaso não me soube matar. Comprei remédio dos ratos e fui ao Chafariz da Junqueira, pus o pó na mão, abri a torneira, mas muito pó escorreu-me pelos dedos. Depois, aí pelas seis da manhã, fui para a porta da mãe dele, para ele me ver morrer. Mas ela mandou-me embora.

Mas tinha bebido veneno... Não lhe fez mal?
Ainda sofri muito durante uns três dias, mas uma rapariga que morava perto da minha casa deu-me azeite para eu vomitar.

Acabou por casar com o Francisco em 1940...
Mas só durou três anos. A minha vida não a fiz, fizeram-ma... Costumo dizer que a minha vida foi Deus Nosso Senhor quem a fez. Depois, passado um tempo, ele veio com a mãe, com o pai e com a irmã, que era a família dele, dizer que tinha dito aquilo por causa dessa rapariga, mas que não podia viver sem mim. Eu já trabalhava na Severa, ganhava o meu dinheiro, e como os meus pais eram pobres tentava ajudá-los. E começaram umas discussões muito feias e eu
não gostava disso.

Foi a gota de água?
Não. Foi depois de uma discussão que ele teve com a minha irmã, por ela vestir uma saia minha. Zanguei-me e deixei-o. Mais tarde, fizemos uma espécie de encontro com um senhor chamado José Melo  que me ia sempre ouvir cantar. Ainda nos quis juntar. E eu também quis, mas disse ao Francisco: «Só vou para o pé de si se for para uma casa nossa e de mais ninguém». Ele não quis, não quis deixar a mãe, e depois foi para África.

E acabou assim...
Não... Havia um homem muito importante em Vila Franca de Xira, o Zé Palha, que quando eu estava a fazer a Severa no Monumental me deu uma vez um cesto enorme com duas mil e tal rosas. E esse gostava muito de mim. Até me dizia: «Como eu gostava de a ter visto com o avental, lá em Alcântara...». Eu respondia: «Se é só por causa do avental, não faltam por aí muitas mulheres». Mas, como ele sabia que eu gostava do Francisco, quando nos separámos veio aqui e disse: «Quando vier aqui o Chico, se eu cá estiver, tu dizes-me. E eu venho cá para falar com ele».
Tentou ajudar-nos, mas já não havia remédio. Mais tarde o Francisco, uma vez que veio cá, disse-lhe: «Se é para saberes se eu gosto da Amália, gosto, nunca gostei de mais ninguém senão da Amália». E coitado, é verdade. Quando eu o deixei as pessoas falaram muito, ele ficou com vergonha por eu o ter deixado e foi para África trabalhar numa companhia inglesa. Era um bom mecânico, ganhava até muito bem, mas teve de voltar quando foi a história da guerra de Angola.

Entretanto Já cantava no Retiro da Severa. A sua passadeira para a glória começou ai?
Comecei no Retiro da Severa em 1939, ainda não estava casada e a minha mãe teve de dar autorização. Casei-me em Junho de 40. Foi assim: o meu irmão Filipe, que era boxeur e boa pessoa (coitado, morreu cedo), conheceu o Santos Moreira, que era viola, e disse-lhe que tinha uma irmã que cantava muito bem e gostava que ele me ouvisse. E eu lá fui com ele. Tinha um medo de cantar que me pelava, mas fui lá e cantei. Na Severa, os grandes cantores eram o Alfredo Marceneiro, a Berta Cardoso, a Adelina Ramos, a Ercília Costa, o Júlio Proença. A Berta Cardoso mandava-me comer, porque eu estava muito magrinha.
Fui lá sem os meus pais saberem. O Retiro da Severa era dirigido pelo Jorge Soriano, que duas vezes por semana ouvia as cantoras novas. Eu já tinha cantado em festas e verbenas e apresentava-me como Amália Rebordão, que era menos vulgar que Rodrigues. Cantei um fado que o Joaquim Lima, o ensaiador da Marcha da Alcântara, tinha feito para mim: «Sou Amália Rebordão/Uma nova cantadeira/Por amar esta canção/Sou fadista verdadeira». Eles gostaram. Eu estava com muito mau aspecto, porque me tinha tentado matar. Depois -como se dizia que os meus pais eram pobres e eu, de facto, ia maltratada, estava muito magra - havia lá na Severa um cozinheiro que me fazia um bife todos os dias... Eu detesto bifes, mas levava-os para casa, porque havia lá quem gostasse. Ainda hoje não gosto de bifes.
« E os que não são nada comunistas e estão lá a cantar, como é o caso do Carlos do Carmo, que é tão político como eu. É político mas é do dinheiro. ».

De quem gostava mais na Severa?
Gostava muito da Hermínia Silva, que era uma artista muito engraçada. Cantava de uma maneira completamente diferente da minha. Eu não gostava de ter a dela, gosto mais de ter a minha. Mas, depois da minha, é da dela que gosto mais. Nunca a tratei por Hermínia, sempre por Senhora D. Hermínia. Um dia aconteceu uma coisa muito engraçada. Perguntou-me: «Dorme bem?». «Sim, durmo». «Ai, eu não durmo nada, nada, passo a noite toda a ler, a ler, a ler». Eu fiquei um bocado espantada... «A ler? Mas a ler o que lê?». «Gosto de ler tudo, o jornal de ponta a ponta». Ela só lia o jornal, mas dizia que gostava muito de ler! Mas era muito engraçada e uma grande artista. Uma revista com ela era de uma pessoa morrer de rir. Mas, voltando atrás, desde que fui a primeira vez à Severa, começaram a mandar caixas com flores lá para casa. E a minha mãe não queria, o meu avô não queria, mas depois foram ter com os meus pais e disseram à minha mãe: «Ó minha senhora, desde que se seja boa pessoa, não é o trabalho que faz mal... A sua filha canta muito bem, tem uma voz muito bonita, vai ter uma grande carreira e estão-lhe a estragar tudo». A minha mãe já estava um bocadinho para aí... Mas os meus tios e toda a minha família deixaram de falar aos meus pais quando eu comecei a cantar. Cantar o fado era muito feio...

Aí no Retiro da Severa fez um contrato de exclusividade.
Eram quinhentos escudos por mês, todos os dias a cantar. O senhor José Melo, de quem já falei, deu conta de que eu estava a ser explorada... e bem! Eu enchia a casa, nos dias em que cantava estava tudo cheio, e os bilhetes eram a sete e quinhentos; e quando eu não estava lá a casa não se enchia nem coisa que se parecesse, e os bilhetes eram a vinte e cinco tostões. Foi assim que cheguei ao conto de réis.

Quem lhe escrevia as letras na altura?
Até aí cantava coisas dos poetas... O Linhares Barbosa era o que tinha mais graça. Tinha também o que escreveu uma coisa muito bonita, Cinco Pedras, e também Anda Daí, A Festa da Mouraria, A Procissão da Senhora da Saúde. O Gabriel Oliveira. E tinha outros, mas não me lembro... Depois foi o Valério. As músicas que ele fez para mim saíram de Lisboa e foram para todo o Portugal. Nessa altura o fado subiu mais. Depois, quando comecei a cantar o Alain, as pessoas diziam: «Agora ela já não canta o Valério». «Já não pode...», era o que queriam dizer. Mas era mentira, porque o Alain era melhor que o Valério... Não posso dizer isso, porque a família fica triste. E do Valério sempre cantei o Ai, Mouraria...

Ao contrário de Hermínia, a Amália lia?
Li sempre. Quando comecei a ler, lia o Balzac, cantei o André Gide e outros. E li todos os escritores portugueses. Gostei de Miguel Torga. Lia muito, até demais. Lia os poetas espanhóis.

A partir de que altura?
Foi quase quando comecei a ser recebida pelas pessoas como devia ser.

Sempre teve medo de pisar o palco? Reza antes de entrar?
Sim. Estou meia hora a rezar primeiro. Só quem não sabe nada é que pode dizer que entra ali à vontade. Mas eu fui sempre muito tímida em qualquer parte, em casa das pessoas... Sou doentiamente tímida.

O que rezava antes de entrar no palco?
Rezava à Nossa Senhora do Carmo. Bem, fui influenciada pela minha avó, que me ensinou umas orações - e uma delas era à Nossa Senhora do Carmo. Essa rezo-a sempre, em qualquer parte onde estiver a cantar.

E os seus amores? Foi amada... Desde actores de Hollywood... Há até uma história de um senhor que lhe fazia a corte e a Amália respondeu-lhe que depois de ter provado pescadas americanas...
Mas isso não foi na América, foi em França... Era um homem que tinha mulheres muito ricas... e que começou a fazer-me a corte. Andava atrás de mim naquelas coisas dos casinos... naquela zona das praias na França, a Cote d'Azur. Então um dia disse-lhe: «Você tem grandes pescadas e agora quer sardinha portuguesa?». E veio no jornal isso. Outra vez estava a cantar no Casino do Mónaco e aparece-me o director artístico a dizer: «Está ali o Onassis, que a queria ver...». E eu: «Quem é esse?». O outro ficou pasmado: «Você não conhece o Onassis?». «Não, não conheço». E foi chamar uma data de gente: «Venham cá, está aqui a primeira pessoa que não sabe quem é o Onassis». O Onassis só queria falar comigo para eu ir cantar à Grécia, a casa dele, mas eu não podia porque estava a trabalhar...

Como se chamava esse seu admirador, o das sardinhas?
Porfírio Rubirosa. Foi um dos casos que deram mais que falar: foi um grande conquistador das mulheres de dinheiro da América. Teve vários casamentos e pensou que também ia casar comigo. Mas houve uma pessoa com quem podia ter havido alguma coisa, que era o Anthony Quinn... Por acaso, fui uma grande palerma... Eu estava no México, ia ao México muitas vezes, e ele era mexicano, como sabe. O Cantinflas também era meu amigo. Quando eu ia lá, tinha logo um jantar e os violinos a tocar Coimbra e cantigas portuguesas que eu cantava. E através dele conheci um homem que fazia filmes, era o melhor do México, que me convidou a ir a casa dele e a certa altura disse-me: «Se a Amália fosse para Portugal com a mão do Anthony Quinn, ficava vaidosa ou envergonhada?». E aquilo para mim não me dizia nada, fui para outro lado.

Ele estava apaixonado por si?
Não sei, mas lá que me fazia a corte... Há cortes que não são assim grandes amores...

Havia outro actor de Hollywood que também esteve multo apaixonado por si.
O Eddy Ficher... O primeiro casamento que ele teve foi com a Debbie Reynolds... até vieram a Portugal passar a lua-de-mel, estiveram no Hotel Aviz. Depois casou com a Elizabeth Taylor, mas não era homem para ela, era muito pequenino... Vieram a Portugal por minha causa. Tenho ali uma dedicatória que me pôs num livro. Já em Espanha tive um rapaz muito apaixonado por mim. Mas não sou pessoa para ir a um sítio qualquer, ter um homem e depois vir-me embora... Vou contar uma anedota que mete três mulheres da má vida e a conversa que tinham com os clientes. A inglesa diz: «Pleased to meet you». Depois a espanhola: «Depressa, que tenho de ir para a missa». No fim, a portuguesa, que é a melhor delas todas, lamenta-se: «E agora, o que é que o senhor vai pensar de mim?». Esta é muito boa, não é?

Gostava de Salazar? Tinha uma admiração por ele como homem ou como político?
Bem, sou filha de uma família que falava do Salazar como uma boa pessoa. Não se esqueçam que depois de matarem o Rei houve a República, e andavam sempre aos tiros. As pessoas não sabiam se chegavam a casa ou não... Era isso que diziam, eu era muito nova. Estavam a falar à minha frente e eu ouvia. Depois apareceu o Salazar a acalmar aquela coisa toda. Mas eu não o conhecia.

Mas admirava-o como político?
Não, não. Não admirava, porque não conhecia a pessoa. Nunca disse que ele era muito bom, que governava não sei quê. Sabia lá quem é que governava!... Nunca fui política. Agora é que estão a fazer de mim política, porque dizem mentiras, mentiras e mentiras. E os que não são nada comunistas e estão lá a cantar, como é o caso do Carlos do Carmo, que é tão político como eu. É político mas é do dinheiro.

Que relação teve com Salazar?
Disseram-se tantas coisas... Até que quem tirava o dinheiro às pessoas era eu e o Salazar. O Salazar não tirou dinheiro nenhum a ninguém e eu também não... E como moro aqui na Rua de São Bernardo, na Estrela, até houve um fado que dizia: «Que bairro aquele, mora lá ele, mora lá ela». Havia tantos boatos... Chegaram a dizer que havia umas escadas entre a minha casa e S. Bento... E que havia um elevador especial para mim. E que aqui no quintal tinha um túnel que ia directo para lá... porque ele não fazia nada sem mim! Ao que chega a estupidez das pessoas!
Só vi Salazar duas vezes na vida. Em 1949 fui cantar a Paris e penso que o embaixador Marcelo Mathias lhe mandou dizer que eu tinha sido um sucesso. Um dia o António Ferro levou-me a conhecê-lo. Depois ele saiu-se com aquela da «criaturinha». É que, quando eu saí dali, acho que ele disse para quem lá estava: «Gostei muito de conhecer a criaturinha». Houve pessoas que não gostaram dessa palavra, mas eu gostei... Porque eu era mesmo criaturinha, tinha vergonha de estar ali e vim-me embora. Assim que me apanhei cá fora, ressuscitei.

Salazar ouviu-a cantar?
Só me ouviu cantar uma vez. Foi em Queluz, na festa de inauguração da Ponte Salazar. Eu estava lá - e o Franco Nogueira veio dizer-me que o Salazar queria falar comigo. E elogiou-me. Depois houve aqueles poemas que lhe enviei: «Ponha-se-me bom depressa/Meu querido presidente/Depressa... Não sei do regulamento/E se isto é má criação/Perdoe o procedimento/E aceite a intenção... que essa cabeça não merece estar doente».

Essa história dos versos foi muito comentada na altura...
Foi por causa de um advogado, o António Maria Pereira (detesto esse homem), que eu ainda estou à espera de... Porque nunca na minha vida mandei nada ao Salazar, a não ser quando ele estava a morrer...

Mas havia pessoas do regime de quem gostava...
Gostava muito do António Ferro e do secretário dele, que era um homem muito simpático também. Mas eu não sabia nada de nada - e havia de saber de política porquê? Mas chegaram a dizer que eu quis matar o Delgado. Era assim: ele foi a minha casa, eu dei-lhe uma taça de champanhe, ele deixou cair a taça, depois apanhou um vidro, mandou analisar - e era veneno! E eu estava aqui no Hospital da CUF, moribunda, com facadas por todo o lado, pernas partidas... Ora, ao mesmo tempo que diziam isto, vinha eu do Brasil de barco. O meu marido, que era o César, ficou lá e eu vim ver o meu pai, que estava com ataques. Ele tinha um efizema pulmonar e uma coisa no estômago... Estava mesmo mal e carente - e de cada vez que ele estava mal eu vinha cá. Eu desci do barco a pé e o João Amaral, que mandava naquela coisa dos barcos, veio até mim: «Ó Amália, o que aconteceu?». «Aconteceu o quê?». «A mim podes-me dizer». «Mas dizer o quê?». «Não te fizeram mal nenhum, os portugueses?». «Não, eu nem vi os portugueses, não fui cantar. Como sabe está lá o César, e pedi-lhe para vir cá para ver o meu pai». «Mas é só isso?». Saí do barco pelo meu pé e estava uma mulher junto ao café a dizer: «Ainda se vê bem aquela facada que ela tem ali..».

O seu marido apoiava Humberto Delgado.
No dia 26 de Abril casei no Brasil com o engenheiro César Seabra. Tinha-o conhecido quando lá cantara. Era do grupo de portugueses que davam dinheiro ao Delgado. Tanto ouvi falar de Delgado que quis conhecê-lo, mas apenas o cumprimentei de raspão no restaurante O Galo. O meu marido também não era político. Ele queria liberdade de expressão, mas nunca se expressou.

Antes do 25 de Abril recebia em casa pessoas consideradas de esquerda...
Aqui vinham a Natália Correia, o Ary dos Santos, o David Mourão-Ferreira, o Alain Oulman. Eu não sabia que o Alain era político, e afinal de contas era. Uma vez disse-me que era maoísta, mas eu não sabia o que isso era. E explicou que os chineses gostavam muito de trabalhar. E eu: «Ó Alain, mas isso é uma chinesice»... Os chineses gostarem muito de trabalhar! Estava aqui ele, a Natália Correia, o Ary dos Santos... O Ary fazia os versos para o Alain... Mas nunca meti o pé em nada.
«Hoje em dia sei que as pessoas gostam de mim, é uma coisa que se vê, uma coisa que sinto. É um amor, eu também gosto das pessoas. Gosto muito dos portugueses e gosto muito de Portugal».

Mas essas tertúlias...
Eram uma coisa e depois tornaram-se outra... É, mas eu não era nada política, não era nada comunista nem coisa nenhuma...

Mas fale-me um pouco dessas tertúlias...
Bem, não falavam de política, talvez porque não confiavam bem em mim... Eu via mais a Natália Correia do que os outros, por causa do Botequim [bar na Graça fundado por Natália Correia]. E estava lá uma que era a Roseta, que também não sei nada dela. Apesar de tudo, gosto mais da Natália Correia, porque era uma pessoa maluca. Mas era inteligente, era enorme... A escrever era enorme e eu gostava muito dela. Também tinha aquela coisa da boquilha, e fazia umas coisas no ar. Um dia estávamos num sítio qualquer e eu: «Ó Natália, conheço aquele homem não sei donde...». «Aquele homem é dos maçons, da Maçonaria». «O que ê isso da Maçonaria?». «Não sabe o que é a Maçonaria?». E ela gritava: «Não sabe o que é a Maçonaria?». «Não, menina, não aprendi isso, não sei». E ela gritava mais, a ver se toda a gente ouvia. Outra vez iam fazer uma peça de teatro em Paris e, como não conheciam ninguém e ninguém os conhecia, vieram-me convidar, porque eu era conhecida. Estrearam uma peça que era a Pécora, e eu comecei a ver que ela punha a Nossa Senhora como se fosse uma prostituta. Fiquei um bocado chocada e disse-lhe a verdade: «Eu não sabia para o que vinha, nem gosto da ideia. Rezo muito sempre, mas hoje tenho que rezar muito mais, porque não gostei de ver Nossa Senhora no papel que você lhe pôs. Mas há uma coisa que tenho de lhe dizer: tenho que rezar ainda muito mais porque gostei da maneira como você a escreveu». Mas aquilo era mesmo uma porcaria de uma coisa...

Como era a sua relação com Ary dos Santos? Como era ele?
O Ary dos Santos era maluco. O César chamava-lhe o 'poeta da Rua da Fruta'. Sabe porquê? Ele falava muito do limão e não sei quê... O Ary não gostei do que fez. Tanta vez que esteve aqui nesta casa - e depois só me telefonou uma vez a perguntar se eu precisava de alguma coisa. «Não, só precisava de cantigas...». Ninguém, nem o David, saiu a dizer: «Olhem que isso é mentira, ela não tem nada a ver com essas coisas». Ninguém o disse. Só o Alain, que era mais comunista do que os outros todos. Era maoísta...

A seguir ao 25 de Abril ficou muito magoada com alguns dos seus amigos. O Ary dos Santos desapareceu de sua casa. Sentiu-se abandonada, nessa altura?
Não vou estar a falar contra ninguém. Quem sou eu para isso? Mas não vou para um lado nem para outro, vou para o meu...

Recorda aquela noite em sua casa em que reuniu o Vinícius de Moraes, o Ary dos Santos, a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira?...
Lembro-me do Vinicius de Moraes. Estava já borracho. Fez para mim o fado Saudades do Brasil em Portugal. Fê-lo lá no Brasil, quando estava a cantar no Canecão. Depois chegou aqui e cantou - e a única coisa que dizia era que já estava bêbedo... E vinha sempre com umas meninas bonitas a passar-lhe as mãos pelas pernas. Dizia constantemente: «Portugal precisa de comunicar, os portugueses têm que comunicar»... Era completamente doido aquele homem. Bebia muito, mas é um grande poeta.

Mas como foi essa noite?
Essa noite veio de outra. Nós estávamos aqui a brincar e estavam a gravar e ficou bem. Resolvemos então fazer outra, mas a outra já não ficou tão bem, porque a primeira foi uma coisa espontânea e a outra já foi feita para ser melhor - e às vezes não é. Estava cá o Ary, a Natália, o David Mourão-Ferreira, o Alain, que estava aqui sempre em casa... Em 1966 eu estava em Israel quando tive a notícia da sua prisão. Passados uns dias fui a Paris e falei com a irmã, que disse que ele estava preso pela PIDE. E que o ministro dos Negócios Estrangeiros francês ia pedir ao Marcelo Mathias que ele fosse expulso de Portugal. Depois eu falei com o ministro dos Negócios Estrangeiros e telefona-me o Marcelo Mathias: «Olhe, Amália, o seu menino do coro vem amanhã para França, mas não é tão menino do coro como você o pintou». Mas eu pintei porque julgava que ele era mesmo assim.

Não sabia que o seu amigo tinha essa intervenção política e por isso defendeu-o. Mas, se soubesse, não o defendia na mesma?
Com certeza, ele era meu amigo... Foi melhor não saber do que saber, mas nunca seria capaz de dizer alguma coisa contra o Alain. É uma adoração que tenho pelo Alain. Uma vez fomos jantar a Cascais... Estava eu, ele e a mulher. Ele foi-me buscar uma almofada, porque eu estava mal sentada. E depois eu disse para a mulher: «O Alain é muito bem educado». «Demais», respondeu ela. Mas disse o 'demais' com um ar ciumento. O Alain era uma pessoa de quem eu gostava muito, ela não era a mesma coisa... E gosto muito do filho dele...

A PIDE nunca a importunou?
Não. Só uma vez me obrigaram a cantar no aniversário do Sporting [O Sporting Clube de Portugal era tido como o clube do regime]. Eu tinha assinado um contrato para ir, mas recebi muitas cartas anónimas a pedir-me para não ir: «Não vás, tu és do povo, és das nossas». Uma delas era da Maria Barroso... Eu nem sabia que ela era política. Tinham sido as eleições onde concorreu o Humberto Delgado e tinham decretado três dias de luto, mas eu não sabia nada de política. Algumas cartas ameaçavam-me e eu não quis ir. Veio então um homem lá da PIDE a dizer que eu fosse, que não me acontecia nada de mal. Mas eu dizia: «Tenho muito medo, porque se for um tiro não me importo, porque não o sinto, mas se for um tomate na cabeça ninguém mo tira...». «Mas vamos no carro blindado...». Eu nem sabia o que era o carro blindado. Então lá fui. Meteram-me no carro blindado e garantiram a minha segurança. E estava tudo cheio. Não me aconteceu nada.

Simpatizou alguma vez com o outro regime?
Com o outro regime? Não tive tempo de o compreender. Como contei atrás, quando em minha casa se falava do Salazar, dizia-se que era um homem extraordinário. Salazar era uma grande pessoa para mim, mas não era pela política... Mas uma vez apaixonei-me por ele, quando tinha 13 anos. Era um homem bonito, era o homem que mandava em tudo.

Chegou a conhecer Marcello Caetano?
Fui um dia a casa dele, por causa da Maluda. Mas vi-o poucas vezes. No 25 de Abril vi como estavam a chamar-lhe nomes... E fiquei a chorar, a chorar, aquilo era muito feio. Diziam coisas muito feias e batiam num carro blindado. Eu acho que as pessoas são más quando fazem isso.

Mas qual era a sua opinião sobre ele?
Olhe, há muitos anos tive a ideia de fazer na Casa dos Bicos uma casa de fados... Aquilo era muito bonito e estava num sítio bom, com lugar para pôr os carros, perto do rio... Queria aquela casa, não queria mais nenhuma. Pedi então a um homem que era o Tenreiro, que eu não conhecia, mas fui lá e disse: «Desculpe, eu não o conheço mas ouvi dizer que o senhor manda em tudo. E já que manda em tudo, talvez mande também nisto. Porque eu gostava de não sei quê». «Pois, isso é um caso muito bicudo, porque afinal de contas já se deu essa casa ao vice-rei da índia». Depois a Maluda disse isso ao Marcello Caetano. E ele respondeu: «Diga lá à Amália que lhe arranjo uma coisa menos bicuda».

De política, portanto, a senhora não teve...
Nunca pus um pé na política. Só não posso gostar do Otelo Saraiva de Carvalho, dizem que matou muita gente. Mas a mim não me mata...

Lembra-se da 2ª Guerra Mundial?
O Hitler, nem dei por isso. Vi foi vestígios de uma guerra muito má em Espanha. Fui para lá e vi aquilo tudo, as pessoas... Foi uma coisa horrível.

Fala da primeira vez que foi a Madrid...
Sim. Fui convidada pelo Theotónio Pereira, que era embaixador em Madrid. Fui lá cantar com outro rapaz, o Gil Proença. O guitarrista era o Armandinho e na viola o Santos Moreira. Eu tinha o passaporte de todos porque era a pessoa mais capaz. Ele mostrou-nos aquela coisa toda. As freiras ficavam à porta das igrejas, desventradas. Foi a única coisa que eu soube da guerra. Nessa altura estavam aqui os refugiados. E Lisboa estava muito bonita. Foi a Lisboa mais bonita que já vi. Era mau por um lado - mas os que se salvaram vieram para cá e ninguém lhes fez mal. E Portugal ganhou muito dinheiro... Quanto ao Hitler, foi um horrível homem. Mas não menos horrível foi o Estaline. Esse homem era muitíssimo mau...

Já nessa altura se sentia um símbolo de Portugal?
Não. Não sentia isso. Hoje em dia sei que as pessoas gostam de mim, é uma coisa que se vê, uma coisa que sinto. É um amor, eu também gosto das pessoas. Gosto muito dos portugueses e gosto muito de Portugal. Só não gosto para aí de uns quatro.

Quem? O Carlos do Carmo?
Bem, já sabe que é o Carlos do Carmo, que no Brasil dizia que eu era do regime. E o filho dele é outro.

Depois do 25 de Abril a Amália sofreu muito...
Vou contar uma coisa. A revolução começou de 24 para 25, e eu tinha um contrato para ir cantar a Madrid à televisão no dia 27. No dia 26 soube que o aeroporto estava fechado e que não havia avião para Madrid. Então telefonei para a fronteira terrestre e disseram que estavam abertos - e fui para lá. Cheguei ao hotel depois do espectáculo, ia com uma amiga daqui, a Maria Amélia, que era uma pessoa muito rica (fugiu de Portugal uma vez porque prenderam o marido e o genro, mas ela não fez nada, só era rica), e quando já estava a despir-me para ir para a cama toca o telefone: «É a Amália?». «Quem fala, é a Maria Amélia?». «A Laura [a empregada] manda dizer que não é preciso porque segunda-feira não há peixe». «O quê?». «A Laura está a dizer que segunda--feira não é preciso, que não há peixe». Não percebi nada, mas depois pus-me a pensar: 'Será que lá andam aos tiros? Que andam às guerras?'. Quando cheguei e vi que andava o boato que eu era não sei quê... fui ao Palácio Foz. Estavam lá uns militares, que não eram muito maus, e disse: «Venho aqui exigir uma mesa-redonda para a televisão». Calcule a minha ingenuidade e a minha culpabilidade... A ingenuidade era muita e a outra não era nada. Nunca pensei que pensassem alguma coisa de mim... Mais tarde fui chamada à Comissão de Extinção da PIDE e veio um homem: «A senhora foi maltratada pela PIDE?», e eu disse: «Infelizmente não». «Infelizmente porquê?». «Se tivesse sido, agora estava muito bem». E depois sabe o que ele me foi buscar? Uns papéis que diziam que uns anos antes eu era comunista.
Revista Tabu (13/11/09) Entrevista por Felícia Cabrita

   

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